Você sabe com quem está falando?

Essa expressão é a marca de um mundo arrogante e prepotente. Ela é dita para posicionar alguém que não entendeu com quem está falando e, por isso mesmo, precisa ser esclarecido.
 
Não é esse o sentido da expressão que vamos tratar aqui. Estamos perguntando “você sabe com quem está falando?” para todos os adultos que interagem com crianças. Você sabe quem é uma criança? Qual é o seu conceito, conhecimento e concepção de criança?
 
A pergunta pode parecer absurda, já que estamos constantemente cruzando, convivendo e criando crianças. Mas a pergunta tem muito sentido, afinal vamos mudando nossa concepção e conceito sobre muitas coisas que estão à nossa volta nos últimos tempos, e estamos mudando profundamente nosso conceito sobre quem são as crianças.
 
Na década de 1970 havia um consenso científico de que os únicos planetas no universo estavam no Sistema Solar, hoje descobrimos muitos outros planetas fora dele. Nessa mesma década, qualquer cadastro de pessoa apresentava apenas duas opções de gênero, hoje é normal um cadastro com várias opções. Até o final do século XX havia certeza de que a micro biosfera humana (bactérias, fungos e vírus presentes no corpo humano) significava problema, hoje, além de ser identificada como muito  maior do que se imaginava, sabe-se que só há espécie humana graças a ela.
 
Ou seja, efetivamente, em muitos casos, não sabemos mesmo com quem e do que estamos falando. O clássico livro de Philippe Aries, “História Social da Criança e da Família” (1981), já nos informava que a concepção de criança e família se altera no tempo. De um ser “engraçadinho” enquanto não anda, até um “adulto pequeno”, que deve copiar e acompanhar os adultos na Idade Média, a criança já foi operária, no início da Revolução Industrial na Inglaterra, até se tornar um “projeto dos pais” na década de 50 nos EUA.
 
A Professora Alison Gopnik, da Universidade da California em Berkeley, nos conta como a sociedade ocidental moderna vai forjando o conceito de “parentalidade”, como uma tarefa das famílias modernas de, através de técnicas, “educar” de forma correta seus filhos. No seu Livro “O Jardineiro e o Carpinteiro” (2016), ela analisa o drama de adultos e crianças apanhados nessa armadilha de estabelecer relação de causalidade entre uma regra “educacional” aplicada pelo adulto na criança, objetivando ter um filho de sucesso e feliz. O título do livro se refere justamente sobre a imensa diferença entre a produção de uma mesa pelo carpinteiro e o plantio e a cultura de um jardim pelo jardineiro. Para ela, do alto das suas pesquisas e análises de famílias e crianças, a educação dos filhos se adequa muito mais aos cuidados de um jardim (jardim da infância, podemos dizer), com toda a sua complexidade, do que a uma oficina de carpintaria, produzindo mesas.
 
Alison Gopnik é uma dos vários pesquisadores e pensadores de todos os campos da ciência e da neuro ciências que hoje se dedicam a esclarecer a imensa complexidade do universo infantil. Cientistas como Patricia Kuhl (do Instituto de Aprendizagem e Ciências do Cérebro da Universidade de Washington), Laura Schulz (do departamento de Ciências Cerebrais e Cognitivas  e pesquisadora do Laboratório de Cognição da Primeira Infância no MIT) e Deb Roy (PhD em Artes e Ciências da Mídia do MIT), entre outros, estão realizando uma profunda transformação do conceito, concepção e entendimento do universo infantil.
 
Tal qual a afirmação sobre os exoplanetas na década de 70, estamos descobrindo um imenso e espetacular universo chamado infância. Tão espetacular é esse novo universo que a frase “Você sabe com quem está falando” é absolutamente pertinente para todos os adultos que se relacionam com crianças, jovens e adolescentes hoje. E a resposta sincera é, não. No que diz respeito a crianças, não sabemos mesmo com quem estamos falando. 
 
Não sabemos com quem estamos falando porque um conjunto de preconceitos, noções superficiais, cultura e imaginários construídos e adotados desde o século passado nos impediram de saber. Esses mesmo padrões que sustentaram até hoje uma concepção de educação, de ensino, de escola e de currículo.
 
Uma grande revolução no conceito e na concepção do universo infantil já começou. O que as pesquisas e os trabalhos produzidos por essa nova geração de cientistas revela é que todas as crianças possuem altas habilidades e o nosso entendimento dessa realidade pode facilitar a emergência de uma imensa potencialidade humana nessa geração de jovens.
 
Ao se relacionar com uma criança hoje, não deixe de se perguntar “você sabe mesmo com quem está falando”?